João Paulo
Simões: Quando me acerco e eventualmente estendo a mão, estou a fazê-lo á
pessoa que o actor em questão é.
Baseia-se no acreditar que essa pessoa pode ser outra - ou mais do que si própria - dentro do contexto que me predisponho a elaborar. É, simultâneamente, um depositar de confiança e acto de fé.
Reside aí talvez o meu interesse em "não-actores" também. Existe algo de fascinante na conjugação de seres treinados para o ofício com outros que adentram as realidades que formulo de forma mais desprotegida.
É um desafio constante, afinar a contribuição de cada um para que estejam todos no mesmo tom - a representar no mesmo filme, portanto. Acabam por ser todos instrumentos cuidadosamente seleccionados para a composição/arranjo/orquestração que está prestes a ganhar forma.
Baseia-se no acreditar que essa pessoa pode ser outra - ou mais do que si própria - dentro do contexto que me predisponho a elaborar. É, simultâneamente, um depositar de confiança e acto de fé.
Reside aí talvez o meu interesse em "não-actores" também. Existe algo de fascinante na conjugação de seres treinados para o ofício com outros que adentram as realidades que formulo de forma mais desprotegida.
É um desafio constante, afinar a contribuição de cada um para que estejam todos no mesmo tom - a representar no mesmo filme, portanto. Acabam por ser todos instrumentos cuidadosamente seleccionados para a composição/arranjo/orquestração que está prestes a ganhar forma.
O actor é o
lado mais delicado daquilo que é fazer Cinema. Quase tudo o resto se controla,
adapta ou incorpora. No actor, reside a incerteza humana - em si uma ferramenta
a ser calibrada, mas que pode ser a anátema do poder que o realizador quer
acreditar (e precisa que os demais acreditem) que tem.
Interessam-me actores destemidos, mas cheios de medos secretos. Que não hesitem em trabalhar as suas contradições mais pessoais. Que possuam um forte auto-conhecimento (que aceitem e saibam trabalhar as suas eventuais hipocrisias, por exemplo). E que esta franqueza os leve mais além, para além do que julgam ser capazes... Trabalhar comigo é um convite a esculpir algo maior com a frágil matéria da vulnerabilidade.
Interessam-me actores destemidos, mas cheios de medos secretos. Que não hesitem em trabalhar as suas contradições mais pessoais. Que possuam um forte auto-conhecimento (que aceitem e saibam trabalhar as suas eventuais hipocrisias, por exemplo). E que esta franqueza os leve mais além, para além do que julgam ser capazes... Trabalhar comigo é um convite a esculpir algo maior com a frágil matéria da vulnerabilidade.
DCL: Acho
interessante que no processo de escolha de elenco sejas tão sensível ao que a
pessoa é independentemente da vertente académica ou profissional, de ser actor
ou não. O que também te interessa portanto é acreditar ou apostar no ser humano
para além do técnico, do artista assumido... Um depositar de confiança e de fé,
como caracterizas essa aposta. Ter fé no outro em qualquer dos aspectos da
nossa vida é algo que se sente quase místico, é assim que profissionalmente
também vês essa fé, como uma experiência a um nível superior, começando desde
logo por uma distinta escolha de intérpretes?
JPS: Existe um
constante sublinhar místico na minha existência. Extensivo portanto à minha
arte. Não sou religioso e nem excessivamente supersticioso, mas vejo a fé, que
escolho depositar no próximo, como um acto de humildade. E acho que a humildade
é um dos principais veículos para se chegar a um nível superior. A única
Criação em que realmente acredito é a nossa – dos seres humanos que se entregam
a uma vocação. O processo criativo, a expressão verdadeira do que temos em nós
(dentro ou para além do conhecimento) são formas de roçar algo puro, maior e
mais acima. Algo que é comum a todos – por mais abstracto que possa parecer na
abordagem – e que, portanto, faz sentido perscrutar no outro. Naquele que vai
ser o intérprete da minha verdade...
DCL: Como o
actor que também és certamente saberás bem em que é que esta perspectiva também
concorrerá para um desempenho especial.
Alargando ao grupo interpretativo referes a orquestra que este é, mas como se processa o ajustamento dos instrumentos uns aos outros, dos profissionais aos amadores, é algo que consigas definir, existem regras especificas?
Alargando ao grupo interpretativo referes a orquestra que este é, mas como se processa o ajustamento dos instrumentos uns aos outros, dos profissionais aos amadores, é algo que consigas definir, existem regras especificas?
JPS: Regras
vão surgindo (e se dissipando) aos poucos. O fazer Cinema está repleto delas –
que são essenciais ter presente (nem que seja para, quando necessário, as
subverter). As que adicionamos, de filme para filme, serão melhor
caracterizadas de metodologia pessoal. E nisto sim, baseio o meu trabalho com
os actores. No caso dos actores formados e experientes, ajuda que tenham
consciência das suas ferramentas e não muito mais. O convite implícito que faço
é que não se limitem ao que conheceram até então. Só assim poderão aprofundar e
chegar a lugares novos e inesperados.
No que diz
respeito aos não-actores, o meu dosear de direcção é ainda mais apurado.
Penetramos juntos e com cautela o contexto fictício e tento estar o mais
presente possível, enquanto, paradoxalmente, existe o esforço de verbalizar não
mais do que o essencial. Pelo menos a um nível técnico.
O que tanto um
como o outro precisa de ir aceitando ao longo do processo é que são
instrumentos numa orquestração maior que eles (que inclui atmosferas sugeridas
por ângulos e enquadramentos, sombras e texturas), E, assim sendo, necessito,
como realizador, de uma concentração ferozmente constante. De uma convicção
inabalável no que estou a expressar. Só assim pode ser mantida a coerência
total e absoluta.
DCL: Um actor
é uma renda frágil, o espaço humano onde se borda a narrativa, a insegurança
desse rendilhado, assim como o amadorismo referido anteriormente são portanto
inspiradores, sentes-te tu próprio seguro e inspirado ao trabalhar a
fragilidade? E libertas o trabalho de actor ao ponto de este levar a alguma
alteração no que está devidamente definido ou limitas esse movimento ao
necessário?
JPS: Tenho
paciência de monge. Manuseio a renda que referes com segurança, sim, mas com
uma enorme delicadeza, também.
Vivo bem com
incertezas. Com o desconhecido na Vida e, portanto, também no meu Cinema. Tendo
em conta que essa fragilidade é talvez inerente ao que é incerto ou íntima de
um familiar desconhecido, sinto-me extremamente atraído e inspirado por tal
processo de criação. Sinto-me de luto, quando chega ao fim... Um luto que advém
do fim de uma partilha na busca de um resultado comum.
Nessa
partilha, reside precisamente uma curiosidade inesgotável da minha parte. Um
desejo de continuar sempre a ver como o intérprete interpreta. Deixando-o ir
mais fundo, mas sem nunca o deixar afogar ou perder de vista o essencial do
pretendido.
DCL: A vocação
é pois algo ilimitado e algo a que até a própria consciência é alheia. Mas num
processo criativo estou de acordo quanto ao ser a humildade essencial para se
chegar a um outro nível, um nível afinal muito humano que eleva quem se quer
elevar ou quem pode, e que é provávelmente o caminho mais certo para se chegar
à verdadeira consciência das coisas, do outro, para se chegar à consciência de
cada ser humano, cada actor da nossa vida. Mas qual será então aquilo de que te
abandonas para nesse processo? Não será que algo que tem a ver com o natural
desejo de controlo que se esvai por entre essa condição a que te submetes?
Isto porque o sentido de humildade pode ser apreendido por condicionantes externas ou fazer naturalmente parte de nós desde que racionalmente nos entendemos. Ou então situamo-nos talvez num local psicológicamente intermédio em que as barreiras se esfumam, e em que se assumem as próprias contradições, essas ou outras, como acho que seja o meu caso, na vertente interpretativa e não só.
Isto porque o sentido de humildade pode ser apreendido por condicionantes externas ou fazer naturalmente parte de nós desde que racionalmente nos entendemos. Ou então situamo-nos talvez num local psicológicamente intermédio em que as barreiras se esfumam, e em que se assumem as próprias contradições, essas ou outras, como acho que seja o meu caso, na vertente interpretativa e não só.
JPS: A
realização em si é mais do que um processo de auto-descoberta. É uma disciplina
que tem necessáriamente de nos tornar seres humanos melhores. Nesse sentido,
aquilo de que me despojo são os detritos acrescidos da vida e as insuficiências
mais pessoais. Tudo para que chegue ao outro, perante mim, e eventualmente a
outros que nunca virei a conhecer.
Não vejo isto
como uma antítese do controlo que priviligio. Apenas uma das formas de mais e
melhor abranger. Sem nada impôr de mim, mas deixando as minhas impressões
digitais bem visíveis.
DCL: As rendas
da interpretação desfazem-se a todo o momento, assim as regras também se
desintegram e por vezes deve ser difícil manter o rumo ou a direcção, tens
encontrado actores ditos difíceis que optam pela interferência?
JPS: Existe
uma muito natural tendência no actor para se considerar a si próprio criador
ou, pelo menos, co-autor. Mas tal, só faz sentido até certo ponto. Cabe-me a
mim saber o tom, o sentido, a abordagem, a forma pretendida. E muito disto vai
para além do que o actor tem para contribuir ao nível técnico, da experiência
ou do talento. Tenho encontrado, muito esporádicamente, interferências, sim,
mas sei (por instinto ou habilidade natural) contorná-las, não perdendo de vista
nem a fagulha inicial, nem o incêndio controlado que se pretende alcançar...
DCL: Quando
uma criação, depois do luto criativo se torna autónoma, liberta do seu
processo, como nasce em ti o projecto seguinte? Para além das influências
materializáveis existe algo no teu pensamento de realizador que apoiado na
vocação te desfie pedaços filosóficos e portanto mais abstractos em cada
necessidade de um novo projecto?
JPS: A palavra
“luto” não poderia ser mais adequada. Trata-se de algo que acontece em duas alturas
muito específicas da feitura de um filme: quando terminam as filmagens (e vejo
os meus actores voltarem a ser eles próprios, de forma mais permanente, e o
último local a ser habitado e re-interpretado voltar à sua função rotineira) e,
sim, quando termina por completo a pós-produção (e o trabalho é entregue ao
mundo, que podemos apenas esperar que não seja cruel para com ele).
O meu ser
regressa então aos padrões mais ou menos definidos, mais ou menos abstractos
(mas dos quais sou íntimo) que me acompanham no dia-a-dia. No mais privado da
minha essência. E deixa que a fórmula mais cativante chegue à superfície. Se me
parecer sólida o suficiente, pego nela para a trabalhar. Se lhe faltar algo,
por exemplo, ao nível narrativo, pondero a canibalização de algum outro
elemento abstracto – que teria em si a raíz de um outro filme, mas que ao
absorvido dentro da coerência presente, confere a autenticidade e o sentido de
inesperado.
DCL: Assim
como na minha alma de intérprete por vezes me deixo transportar por algo que
não sei muito bem como definir mas que existe para além do espaço, como uma
memória dessa mesma alma…
Dizes que
vives bem com as incertezas, o desconhecido… O desconhecido influencia-te mais
portanto… Não estará o desconhecido contido no que se pensa conhecer ou o
desconhecido é sempre algo novo?
E que
influência tem a cor no teu trabalho? O que te faz "ilustrar" a tua
visão a preto e branco ou, por outro lado, o que te faz "ilustrá-la" a
cores?
JPS: Acredito
que tenhas razão em ponderar um latente desconhecido dentro do que conhecemos.
Opero assim, aliás. Não numa busca incessante por desconhecidos
hiperbólicamente exteriores a nós, mas num saber olhar para o reconhecível,
expressando as questões e interrogações sem ser interpretativo. Deixando as respostas
para quem as precisa...
O que dita o
uso da cor (ou a ausência ou intensidade da mesma) está ligado exclusivamente
ao que o projecto em si me comunica a um nível quase inconsciente e
absolutamente instintivo. Como se o filme escolhesse, ele próprio como se quer
vestir (ou despir). Apenas tenho que o escutar, respeitar e fazer justiça ao
pretendido...
DCL: Para quem
fazes o teu Cinema, qual seria o público que gostarias que fosse o teu? E em
que medida é que procuras inovar ou surpreender um público?
JPS: Costumo
dizer que o meu fazer Cinema é imbuído de esperança e que esta reside num
querer acreditar que existem, algures, outros seres dotados de uma curiosidade
infatigável. Uma curiosidade como a minha – o que portanto, numa resposta mais
directa, quer dizer que o faço para mim.
Mas considero
errado (ou limitador) que “comece e acabe em mim”. Existe, nas minhas
narrativas, elaborações visuais e abstrações, um constante convite a decifrar.
Suscitam sempre uma espécie de trabalho de detective cinéfilo que,
contraditóriamente ou não, beneficia de alguma “virgindade” da parte do
espectador. Ou seja, embora o considere quase impossível, o meu público ideal
não deveria estar “corrompido” pelas filmografias acumuladas ao longo da sua
experiência passiva de espectador.
Um público,
portanto, que não apenas aprecie este ou aquele detalhe por mim formulado em
relação ao que este ou aquele filme de outrém possa ter expressado.
Isto está
longe de negar definitivas e palpáveis influências de outros cineastas no meu
trabalho. Acontece por vezes mesmo criar referências mais ou menos explícitas
aos meus antecessores. Mas, nesse sentido, não estarei meramente a homenagear
cineastas e sim, mentes que admiro – alinhando-as com outras tantas que se
expressam noutras áreas (como a Arquitectura, a Música, a Poesia...).
Acredito que o
segredo da constante renovação e, consequentemente, inovação do Cinema como
forma de arte esteja alojado algures dentro dos parâmetros do seu próprio
exercício.
Selecciono
sempre, nos meus filmes, o momento que considero certo para que a linguagem
cinematográfica (e tudo o que a constitui) venha ao de cima sem artifícios. Uma
busca pela pureza no método, talvez... Abandonando assim a ilusão que tanto eu
como o espectador nos predispusémos, de certa forma, a seguir. Por vezes isto
causa choque ou estranhamento, pois o público quer fantasia (ou uma
identificação, mais ou menos rígida, com a realidade) e o que é puro, nem
sempre é fácil de digerir... Mas considero vital relembrar que, tal como cada
filme merece o tom certo (ao qual tudo o resto se acresce e complementa), cada
instante de tempo no ecrã é uma construção e que, por vezes, pode ser
fascinante vislumbrar os alicerces da mesma.
A inovação e
surpresa, tal como por mim entendidas, estão assim longe de ser algo narrativo
(ou circunscrito ao enredo). Porque o Cinema é tão mais do que isso...
DCL: Depreendi
das tuas palavras que essa esperança numa visão virgem de que dizes ser o teu Cinema imbuído partirá portanto daquilo que és, do que te caracteriza, e da
consciente curiosidade que esperas e que projectas no público, mas não será
essa esperança impossível ao não se conseguir excluir ninguém, nem o próprio
cineasta, de influências e portanto de um passado?
JPS: Talvez me
esteja a expressar dentro de alguma utopia artística ou, pelo menos,
resguardando-me num ideal de público que não reflete a realidade em que
vivemos. E talvez isso advenha do meu rebelar contra a postura geral de consumo
(pois o excesso leva a constantes referências culturais – dentro de uma
conveniente ausência de verdadeira cultura). Mas, simultâneamente, não encontro
qualquer contradição se vier acrescentar que o Passado que evocas é vital neste
processo.
Para mim,
Cinema é memória. E se os meus filmes são memórias que deixo flutuar e
propagarem-se mundo fora, as de quem os
aprecia passam a ser o interlocutor inconsciente nesta partilha...
DCL: A arte
reflecte a globalidade, a realidade total a cada instante, mas não existirá
apenas na contingência de sempre se encontrarem formas de reformular todas as,
contínuas, memórias?
E em que
medida é que na tua cinematografia o tempo e o espaço se destacam dos da
realidade comum, acompanhando ou não o tempo e o espaço sociais?
JPS: Trazes ao
de cima uma memória pessoal há muito submersa no meu oceano de vivências. Antes
de ter enveredado com maior e mais afinco pela minha vocação, vivi (durante
cerca de um ano) num limbo de pensamentos, ideias e formulações secretas. Não
um limbo por estar perdido, mas por ser um período de transição e, assim sendo,
de espera. Nesse ano, escrevi um romance intitulado Otomana.
Dentro do
grupo selecto daqueles que o leram, houve quem tivesse expressado que o que
certos capítulos nos apresentavam eram memórias primitivas. Que, sendo a memória
igualmente genética, carregamos em nós pedaços de (in)consciência dos nossos
antepassados mais primordiais. E que, nessas páginas, eu parecia ter acedido a
este arquivo de uma forma imediata e pura.
Isto para
dizer que acredito que mesmo o que consideramos ser muito nosso e privado ao
nível das memórias sofre constantes reformulações, mas que, para mim, existe
uma fonte comum – que tanto pode explicar muita coisa, como colocar muitas mais
em questão. E que a arte, tal como a vejo e exercito, tenta engarrafar a água
dessa fonte. Com o mínimo de contaminações possível...
DCL: O teu Cinema vive num âmago diverso ou prefere habitar aquilo que todos conhecemos,
mas sob uma diferente perspectiva?
JPS: Essa é
talvez a pergunta mais pertinente que me podem fazer nesta altura do meu
percurso cinematográfico. Apesar de roçar um conceito que sempre me acompanhou,
não tem resposta fácil, nem imediata.
Sempre
acreditei que não é a função do Cinema retratar a realidade tal como ela é.
Aliás, o chamado realismo social continua a causar-me uma irritação que ronda a
urticária. Nada me parece limitar ou restringir mais a arte do que tal colete
de forças que aqueles ditos cineastas com consciência voluntáriamente vestem.
Portanto, o
meu trabalho tem sido caracterizado por uma busca pelo equilíbrio alquímico
entre o que é reconhecível do tal tempo e espaço que habitamos e elaborações
mais subjectivas, que se estendem ao tom, atmosfera ou comportamento das
personagens. Interessam-me assim, formas não-óbvias de comunicar o que é ser
humano.
Mas, a minha
experiência profissional e maturidade pessoal têm me vindo a colocar em
contacto com causas e resultados que são consequências muito específicas de
realidades sociais e políticas. Se aliarmos isso ao meu progressivo interesse
em incorporar cada vez mais elementos reais nas minhas narrativas, temos aqui
bem mais do que uma resposta inconclusiva, mas diversas questões em aberto...
DCL: Ao
restringires a inovação e a surpresa ao inesperado das circunstâncias
significará isso que conscientemente resistes ao “descontrolo” do que se te
poderá apresentar inconscientemente como novo?
JPS: Acho que
não resisto ao novo na expressão artiística, pois agrada-me a surpresa e
fascina-me o desconhecido, como terei dito antes. Mas, talvez exista sim um semi-consciente
calibrar daquilo que posso ou não controlar. Porque a coerência final é a minha
maior prioridade e abertura a mais pode, com muita facilidade, a dissipar.
Falamos de algo muito pouco tangível. Apenas comunicado em parte no acto de
realizar. Ou melhor dizendo: na luta por materializar...
DCL: Qualquer
acto criativo puro é por natureza inovador e surpreendente pois formula-se e
acontece nuclear a parâmetros e fronteiras da ilimitada imaginação, portanto em
que medida é que a noção de “parâmetro do próprio exercício” exclui ou delimita
o inesperado?
JPS: O excluir
e delimitar são absolutamente inerentes a essa noção. Creio que o factor mais
determinante a acrescentar (para maior entendimento do que é encarar o
inesperado dentro do exercício cinematográfico) é a disciplina – que, por sua
vez, é filha da relação (primordial, mas também, diria, homosexual) entre a
dedicação e a vocação.
DCL: Um
cineasta funciona como uma espécie de projector sobre as imagens e seus
conceitos inerentes, que existem e que serão reorganizados, recriados por este,
ou é bem mais o criador de imagens ainda não reveladas?
JPS: Todos
queremos acreditar (uns mais do que outros) que criamos sempre de raíz. Que o
que formulamos e como o materializamos não fora revelado até então. Mas, a
autenticidade não é isso.
Na verdade,
estamos todos a olhar para o que sempre aqui esteve, mas sempre de forma
renovada, no confinar do nosso olhar ou visão pessoal.
Ao voltarmos
atrás – ao que partilhei em termos de memórias primitivas – talvez encontremos
a mais límpida das respostas. Mesmo que esta tenha um inesperado ou
desconcertante ponto de interrogação como derradeira pontuação. E, uma vez
mais, penetramos o território do que mais me fascina e me interessa explorar.
Se a expressão
artística é uma constante oferta de verdades pessoais, a apreciação da mesma
passa impreterívelmente pelo aceitar o convite a ver a Vida através de outros
olhos.